Ficar olhando o telefone sem fazer a ligação que estava planejando há dias; estar sentado em frente ao seu computador com o e-mail aberto para responder, e olhar a tela sem fazer nada; saber que tem alguma tarefa pendente que não pode adiar, mas ser incapaz de iniciá-la; perceber que deveria começar a escrever esse artigo, cortar os tomates ou pegar sua mochila e ir à academia, mas entre essa ação e você existe um abismo, algo que o impede de mover qualquer músculo ou gerar um só pensamento sobre essa questão de forma concreta.
“Vago, preguiçoso, pouco comprometido. Por que quando você começa certas coisas não pode parar de fazê-las?”. Muitas vezes, outras pessoas costumam nos perguntar, referindo-se a esses interesses especiais que nos fazem sentir tão bem e que nos tranquilizam nos mimando em sua repetitividade familiar.
Existe uma dualidade enlouquecedora, uma dicotomia na forma das quais se expressam as chamadas funções executivas nas pessoas autistas, algo que nos torna difícil de definir, porque alternamos momentos de extrema eficácia e atividade, da prodigiosa memória para esses detalhes que ninguém parece notar; das habilidades, às vezes, incrivelmente desenvolvidas em áreas extremamente específicas, com outros momentos de total inatividade, da incapacidade para considerar as tarefas mais simples e planejadas há muito tempo, da resistência de cumprir “o dever”.
É certo que, para um neurotípico, algumas dificuldades são compreensíveis até certo ponto, até começarem a se tornar patológicas, estranhas, inexplicáveis. E, é aí, que nos qualificam como “preguiçosos”, por culpa dos habituais “déficits” nas funções executivas; como sempre, nos encontramos diante de um funcionamento neurológico diferente, em comparação com o que nós, autistas, sempre sairemos perdendo enquanto o modelo de referência seja exclusivamente o da maioria, o padrão neurotípico.
Em um artigo[1] interessante, os autores, baseando-se, sobretudo, na experiência em primeira mão de pessoas autistas, levantam a hipótese de que essa dificuldade típica do autismo para iniciar uma ação pode surgir de uma forte carga de estresse e ansiedade.
Esta hipótese se basearia na qual, em muitos casos (e eu o confirmo), somos nós mesmos que percebemos como a ansiedade nos paralisa: fazer uma ligação pode não significar nada para uma pessoa neurotípica, mas, naquelas com dificuldades de se relacionar com os outros, pode desencadear uma crise, assim como ter que ir a uma loja e interagir com os atendentes, ou entrar em uma academia com muito ruído e cheia de pessoas.
O estresse que provoca algumas situações tem a capacidade de bloquear a ação, como se fosse um mecanismo de defesa que pretende evitar que enfrentemos situações pesadas, cansativas, ou, em uma palavra: estressantes. Essa ideia ressalta o impacto da interação social na vida diária de um autista, e deveria nos fazer refletir sobre como as dificuldades (em casos extremos, as incapacidades) dos neurodivergentes são quase sempre causadas pela dissonância entre as expectativas da sociedade e o nosso funcionamento diferente.
O limite que eu encontro nessa hipótese, que, certamente, segue sendo válida no caso da ansiedade, é que, em muitas situações, o bloqueio é produzido inclusive na ausência de eventos estressantes. Permaneço olhando fixamente a tela do computador, com o cursor piscando na página em branco do documento, quando, há alguns minutos, tinha em mente o artigo que gostaria de escrever, e não se trata de um bloqueio de ansiedade. Ao contrário, acho que tem a ver com essa dificuldade para filtrar e gerenciar os estímulos (tanto externos, por exemplo, ruídos ou luzes, como internos, relacionados com pensamentos e emoções, que, de repente, aparecem na mente e “captam” nossa atenção) sobre a que já escrevi em dois artigos anteriores sobre funções executivas.
Portanto, no artigo, também, são relacionados o aspecto sensorial com o estresse, argumentando que a sensorialidade diferente pode ser uma fonte disso, e, assim, inibir o início de uma ação, e, no entanto, por plausível que me pareça, não é desse jeito como eu me sinto. Ao menos, não na maioria dos casos relacionados com a estimulação sensorial.
No artigo anterior (sobre a atenção) expliquei como, segundo a teoria da “carga perceptiva” [2], a atenção permanece aberta a todos os estímulos sensoriais, ao menos que a atividade que estamos realizando seja de interesse especial para nós, e que possua uma determinada quantidade de informação relevante. Se algo não nos interessa muito, seguiremos percebendo e processando cada estímulo externo ou interno; qualquer ruído, cheiro, voz ou pensamento que passe por nossa cabeça será considerado e não poderemos nos concentrar.
Todo o aspecto anterior teria consequências sobre outras funções executivas, entre as quais encontramos a capacidade de iniciar uma ação ou tarefa de forma independente.
Na prática, quando nos encontramos à mercê dos estímulos aos quais estamos constantemente submetidos, nossa atenção processa tudo, comprometendo nossa memória de curto prazo (lembrar-se de fazer essa ligação) e também a capacidade de realizar aqueles pequenos gestos necessários para realizar a chamada por telefone (iniciar uma ação). E, dado que o cérebro autista parece ter certa dificuldade para desativar a Rede de Modo Pré-determinado, isto é, essa rede de neurônios que são ativadas ao não pensarmos em nada e a mente vaga de um pensamento a outro, é fácil entender o quão difícil pode ser sair desse estado.
Na minha opinião, o esforço requerido para reunir a energia necessária que nos permita nos concentrar na tarefa em questão é tão grande que, às vezes, é impossível ter êxito. A impressão que tenho frequentemente é a de estar no meio do mar durante uma tempestade, à mercê das ondas e da corrente. Inclusive, se viesse um barco a poucos metros de distância, não poderia encontrar a força necessária para subir a bordo.
E, então, como podemos fazê-lo? Porque, gostemos ou não, vivemos em uma sociedade que funciona, de certa forma, onde os outros parecem ter menos problemas do que nós para cumprir os prazos e realizar as tarefas que nos são atribuídas, e sem que ninguém lhes faça um acompanhamento constantemente.
De fato, uma possível solução é encontrar alguém que, de vez em quando, nos lembre que temos que fazer uma ligação ou escrever um e-mail. Porém, isso nem sempre funciona, porque muitas vezes, nossa resposta (“Sim, agora irei fazer a ligação!”) não são correspondidas com a ação de estender a mão e pegar o telefone da mesa, ou de folhear a agenda telefônica e ligar para um deles. A oferta também corre o risco de ser vista como uma ordem, despertando um sentimento de rejeição em muitos autistas, de modo que o risco de nunca realizarmos aquela determinada tarefa se torna uma certeza.
Para funcionar, a proposta deve ser suave e não deixar saída; não deve haver tempo para responder e depois não agir. O celular, por exemplo, deve ser aproximado ao ouvido com a chamada já em andamento. E talvez um sorriso também possa ajudar a realizar a tarefa.
No meu caso, além desse sistema (que requer alguém disponível para se fazer praticamente de secretário-cuidador), considero muito útil visualizar a tarefa a ser executada como se eu já a estivesse realizando, me imaginando ligando para a companhia de seguros ou entrando na loja para perguntar se eles têm um suéter preto. Visualizar tudo até que eu possa sentir a ansiedade da situação, e depois dizer para mim mesmo, “agora conte até três, no três, pegue o telefone e ligo/me levanto e vou à loja”. Logo, o faço e vou.
Acredito que ter empatia com a situação, de alguma maneira, consegue substituir (ou gerar) o interesse necessário para recuperar algo de atenção e ter um pensamento coerente. Então, nesse ponto, contar é como um empurrão suave, uma ajuda externa: é a minha mente que acompanha a ação.
Outras vezes, trato de visualizar as consequências negativas da inatividade. Se não enviar a fatura, não receberá o salário e não poderá comprar, comer, pagar o aluguel. Se não chamar o seu médico, poderá passar batido os sintomas que, se fossem detectados a tempo, seriam triviais. Se não for à loja comprar uma camisa, será possível que se esgotem e logo terá uma crise quando for ao trabalho sem nada para vestir.
Seguramente, cada um de nós desenvolveu certas estratégias para poder superar o momento de bloqueio que, muitas vezes, precede uma ação. Em troca, se torna importante para mim explicar que não estamos falando sobre caprichos; se a criança não faz algo, não é necessariamente porque é preguiçosa. Então, entre nós, também teria que redefinir a preguiça; não entendo por que todos nós temos que ser ativos da mesma maneira.
Frequentemente, por trás da inatividade, existe uma dificuldade que não merece ser repreendida. Pelo contrário, se você vê que uma pessoa autista tem problemas para cumprir com o que a sociedade considera como padrões necessários de funcionamento, tente ajudá-la. Não nos faça sentir constantemente mal, nos recriminando pela nossa suposta preguiça: já nos sentimos bastante mal com isso, sabemos que certas coisas devem ser feitas, estamos conscientes das consequências de não poder fazê-las, sabemos que estão decepcionando você. Mais uma vez.
E digo isto, de vez em quando, porque considero importante reiterar os conceitos úteis: um diagnóstico é bem usado quando serve para entender o porquê de certas diferenças (não déficits), e encontrar maneiras de tornar menos difícil a interação necessária com uma sociedade que funciona de maneira diferente.
NOTAS:
[1] Donnellan, A. M., Leary, M. R., & Robledo, J. P. (2006). I can’t get started: Stress and the role of movement differences in people with autism. In M. G. Baron, J. Groden (Eds.) & G. Groden & L. Lipsitt (Ed.), Stress and coping in autism (p. 205–245). Oxford University Press.
[2] Lavie, N. (1995). Perceptual load as a necessary condition for selective attention. Journal of Experimental Psychology: Human Perception and Performance, 21, 451–468.