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As funções executivas no autismo: a atenção

jul 21, 2023

A criança é inteligente, mas não se aplica. Vive no próprio mundo; quando faz algo que lhe interessa não há maneira de chamar sua atenção. Ela se distrai com qualquer coisa, não pode ficar quieta nem dois minutos seguidos. Está imersa na leitura de um texto especializado sobre um tema de interesse especial e se esquece de comer, de beber, não ouve o telefone tocar.

 

O caso da criança é apenas um exemplo, mas existem muitos outros. Eu, quando envio e-mails de trabalho ou estou ocupado em algo que não me interessa muito, fico distraído com o que acontece ao meu redor: o canto dos pássaros do lado de fora, os passos dos vizinhos nas escadas, o rangido de um móvel. É como se eu não pudesse concentrar minha atenção nas coisas que não me interessam, e isso é ainda mais certo quando mais uma tarefa é imposta a mim.

 

Desde pequeno, me lembro muito bem deste sentimento de rejeição diante da imposição: você “deve” ir para escola, “deve” estudar matérias que não te interessam, “deve” visitar familiares de vez em quando, na realidade, você gostaria de estar lendo um livro. E, sempre que existe um “deve”, minha atenção se esvai até voltar quase inexistente.

 

O mais curioso da atenção, e isso é mais evidente em pessoas autistas, é essa dicotomia intrínseca: a atenção é extremamente volátil e frágil em algumas situações, mas profunda e insubstituível em outras. Ontem de manhã, por exemplo, estava tão concentrado em investigar e estudar o material para este artigo, que não escutei o som do meu celular tocando, que me lembrava que deveria me preparar para uma reunião muito importante da universidade.

 

Por outro lado, no restante do dia, tive que trabalhar na adaptação do formato das aulas presenciais para o online, devido ao fechamento das universidades pela pandemia de Covid, mas seguia pensando em outras coisas. Me custava muito manter um nível de concentração decente; minha mente vagava desde a notícia do coronavírus, passando pelo artigo que eu não podia escrever e acabando com o meu desejo de sair para caminhar pelo parque, longe do ruído da cidade.

 

Essas situações, como sempre, também podem ser comuns em pessoas neurotípicas, já que, como estamos vendo agora, a atenção parece ter essa dualidade inata em qualquer um. Porém, no autismo (e em outras condições, como no TDAH [1, 2]) este funcionamento particularmente seletivo da atenção alcança níveis altíssimos, de modo que, quando nós, neurodivergentes, enfrentamos uma sociedade que nos exige uma forma de atenção concreta, começamos a ter problemas muito graves.

 

O pai da psicologia norte-americana, William James, disse: “Somente aqueles elementos que noto dão forma a minha mente; sem um interesse seletivo, a experiência é um caos absoluto. Só o interesse de acento e ênfase, luz e sombra, coloca em segundo plano o que se destaca. Em duas palavras: perspectiva compreensível.” [3]

 

Essa ideia de que a atenção é, de alguma maneira, influenciada pelo interesse que temos em um tema, e ​​não tanto pelo esforço que colocamos em nos concentrar, foi desenvolvida pelo neurocientista Nilli Lavie. Segundo ele, a seletividade da atenção depende diretamente do que ele define como a “carga perceptiva” da atividade, isto é, da quantidade de informação relevante ou de nosso interesse que está presente em um tema ou uma tarefa.

 

Na prática, quando o interesse (a carga perceptiva) é baixo, os estímulos externos (definidos como “distratores”) não superam o acesso da capacidade perceptiva, isto é, não são filtrados, e, portanto, são processados ​​por nosso cérebro e entram em conflito com a atenção, que não é mantida.

 

Por outro lado, quando a carga perceptiva (ou seja, o interesse que colocamos em um tema) é alta, os distratores (aqueles elementos irrelevantes para nossa tarefa) não são processados, deixando que a atenção (e outras funções executivas como a memória a curto prazo) tenha espaço suficiente para funcionar e focar na tarefa em questão. É importante precisar que a “carga perceptiva” não é sinônimo de dificuldade, mas, sim, exclusivamente de interesse.

 

Essa característica também tem sido estudada em relação ao autismo, e o resultado confirma o que toda pessoa autista sabe: a atenção se vê constantemente atraída por uma grande infinidade de detalhes, inclusive em situações nas quais o esforço requerido deveria garantir uma concentração suficientemente intensa como para eliminar as distrações. No entanto, somente somos capazes de manter níveis de atenção extremamente altos quando o que estamos fazendo nos interessa (o que se denomina hiperfocalização).

 

Na prática, o estudo[5] confirma que pessoas autistas e neurotípicas têm capacidades perceptivas diferentes devido a diferenças na organização neurológica. Se a atividade a qual fazemos não se esgota por si só, a capacidade perceptiva, isto é, se o empenho que colocamos em uma atividade não é suficiente por si só para consumir as energias disponíveis e cortar qualquer outro estímulo, então seguiremos nos distraindo com os passos do vizinho ou o zumbido de uma mosca ao nosso redor.

 

Em comparação com os neurotípicos, nós, autistas, teríamos, portanto, uma maior capacidade perceptiva, ou seja, seríamos capazes de processar um maior número de “distratores”, elementos estranhos à tarefa que estamos realizando, sem que ele reduza necessariamente o rendimento da atividade, tal como explicam os pesquisadores: “Esse aumento da distração poderia se conceitualizar como um reflexo de uma maior capacidade, em lugar de um déficit, apesar de que a distração tem efeitos potencialmente danosos em situações da vida real”.[5]

 

Outras investigações também confirmariam a hipótese de que a percepção tem capacidades limitadas, mas, apesar disso, ela tende a processar automaticamente todos os estímulos até se esgotar, enquanto um elevado interesse por um tema ou uma tarefa seria suficiente para não deixar espaço disponível para a percepção de estímulos irrelevantes[6]. Em poucas palavras: se estamos interessados ​​em algo, não damos ao nosso cérebro a oportunidade de se distrair.

 

Essa ideia me lembra a teoria da sistematização de Simon Baron-Cohen, quem considerava que o estilo cognitivo autista é particularmente hábil na sistematização, na busca, compressão e elaboração de sistemas, e isso aconteceria precisamente através de uma alta atenção aos detalhes.

 

Sei muito bem que Baron-Cohen se equivocou muitas vezes, especialmente com a teoria (que logo resultou ser incorreta) de que nós, autistas, não somos capazes de ter empatia. Apesar disso, parece plausível sua ideia de que “uma excelente atenção aos detalhes nas condições do espectro autista é, em si mesma, uma consequência da hipersensibilidade sensorial” [7]. Essa ideia coincidiria com a apresentada anteriormente, segundo a qual, nas pessoas autistas, o acesso para desencadear o bloqueio aos estímulos externos (distrações) é extremamente alto. Isso se traduz em uma percepção sensorial sem filtros, que só pode silenciar quando a carga de interesse em um tema é tão elevada que esgota a capacidade do cérebro para processar estímulos irrelevantes.

 

Independentemente das razões concretas que se escondem atrás dessas características, parece necessário que seja considerado esse funcionamento diferente da atenção, sobretudo em determinados ambientes (como o escolar e o de trabalho). Isso é importante porque pode levar a encontrar estratégias para aumentar a capacidade de atenção em certas pessoas (como em autistas e nas com TDAH) ao potencializar a propensão natural a evitar as distrações quando um está interessado em um tema, e porque essa habilidade pode conduzir a estados muito elevados de atenção e concentração.

 

Essa super atenção, o hiperfoco, pode ser uma característica extremamente útil tanto a nível acadêmico como profissional, mas, com muita frequência, é mal interpretada e castigada. Quantas vezes escutamos frases como as do início do artigo: “é inteligente mas não se aplica”, “estuda apenas o que gosta”, “quando faz algo que lhe interessa não existe forma de chamar sua atenção”…

 

Cada vez que recebemos um golpe por essa capacidade de explorar um interesse particular e alcançar níveis de atenção altíssimos, nos explicam que não é bom se obcecar desta maneira com certas coisas, que deveríamos atuar como os outros, que teríamos que nos abrir mais ou ampliar nosso leque de interesses (o que, muitas vezes, significa não nos aprofundar em nada).

 

E, como acontece frequentemente, pergunto a mim mesmo como teria sido a minha adolescência se esse forte interesse pela música não tivesse sido visto como algo doentio, e, ao invés de criar obstáculos constantemente, tivesse sido alimentado, ajudado e apoiado.

 

NOTAS:

[1] Smalley, S. L., Kustanovich, V., Minassian, S. L., Stone, J. L., Ogdie, M. N., McGough, J. J., … Nelson, S. F. (2002). Genetic Linkage of Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder on Chromosome 16p13, in a Region Implicated in Autism. The American Journal of Human Genetics, 71(4), 959–963. doi:10.1086/342732

[2]Corbett, B. A., Constantine, L. J., Hendren, R., Rocke, D., & Ozonoff, S. (2009). Examining executive functioning in children with autism spectrum disorder, attention deficit hyperactivity disorder and typical development. Psychiatry Research, 166(2-3), 210–222. doi:10.1016/j.psychres.2008.02.005

[3] James, W.A. (1890). The principles of psychology. New York: Dover.

[4] Lavie, N. (1995). Perceptual load as a necessary condition for selective attention. Journal of Experimental Psychology: Human Perception and Performance, 21, 451–468.

[5] Remington, A., Swettenham, J., Campbell, R., & Coleman, M. (2009). Selective Attention and Perceptual Load in Autism Spectrum Disorder. Psychological Science, 20(11), 1388–1393. doi:10.1111/j.1467-9280.2009.02454.x

[6] Lavie, N. (2005). Distracted and confused?: Selective attention under load. Trends in Cognitive Sciences, 9, 75–82.

[7] Baron-Cohen, S., Ashwin, E., Ashwin, C., Tavassoli, T., & Chakrabarti, B. (2009). Talent in autism: hyper-systemizing, hyper-attention to detail and sensory hypersensitivity. Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences, 364(1522), 1377–1383. doi:10.1098/rstb.2008.0337